"O BARÃO DO RIO BRANCO
A notícia de ter sido assinado o tratado do Acre, nas vantajosas
condições conhecidas, importando um passo decisivo para a solução da mais dificultosa,
da mais complicada, da mais tremenda de nossas questões de limites, é de molde a atrair
ainda uma vez, e de modo solene, a atenção geral para o extraordinário negociador
principal do pleito.
Três ou quatro vêzes posta a perder por declarações precipitadas, e
tristemente ruidosas na sua precipitação, da parte de nossos governos, a questão do
Acre tinha chegado nos últimos tempos, com a intervenção do célebre sindicato
anglo-americano, a assumir aspecto de todo desesperador para o Brasil. Era, infelizmente,
a crença e a confissão geral.
Mas a terra de Santa Cruz tinha ainda uma vez de se sair airosamente
dos debates que tem travado com os seus vizinhos.
Havia ainda quem pudesse torcer o curso das negociações, safar-se da
trilha apertada em que se tresmalhavam e perdiam os discutidores de arribação e
encontrar a estrada larga das soluções previdentes e dignas.
Havia ainda quem pudesse operar essa milagrosa mutação, e outro não
poderia ser senão o glorioso negociador das Missões e do Amapá, dous famosíssimos
debates mais de uma vez quase também perdidos para nós.
E qual é a razão da superioridade diplomática do barão do Rio
Branco? Será êle uma dessas imponentes, insinuantes, irresistíveis figuras, por não
sei que fascinadora magia do aspecto e do dizer, que tem sido o condão de mais de um
diploma célebre? Não. Será êle um dêsses espíritos, cuja trama intelectual tem a
propriedade de formar uma espécie de teia enrediça, apta a envolver, prendendo, as almas
alheias? Não. Terá êle no íntimo mental umas espécies de meandros, de sinuosidades,
de labirintos, docemente velados, em que as idéias do adversário se vão insensivelmente
deixando escoar, sem que de todo se possam depois libertar?
Ainda não. Êle não é um diplomata de ofício, como foi por certo
seu ilustre pai.
Sua fôrça, seu prestígio lhe advêm de outra parte: brotam de sua
vasta cultura histórica e geográfica, de seu profundo saber, acumulado por quarenta
longos anos, da corografia e dos anais pátrios, nomeadamente das lutas e pendências de
guerra havidas com as gentes vizinhas.
Sôbre êste largo e seguro alicerce é que se tem alevantado a
capacidade diplomática de Rio Branco.
Como historiador, apesar de não haver ainda publicado uma obra de
conjunto, são tão consideráveis os fragmentos esparsos de seus labôres, de suas
pesquisas, que possível e até fácil ao crítico é defini-lo e classificá-lo.
Duas notas capitais lhe descubro no seu tratar os anais brasileiros: a
subordinação da história à geografia, a predileção evidente pelo aspecto militar de
nossas lides.
Pela primeira qualidade êle se filia no grupo dos que resolutamente
transportaram para as questões, problemas e fatos sociais e políticos a imensa
revolução operada nesta ordem de estudos pelo extraordinário avanço das ciências
naturais e biológicas.
Destarte, a formação geográfica, por exemplo, dos Estados da Europa,
tratada por um Freemann, um Sorel, mostra bem nìtidamente o imensurável poder dêsse
fator físico, que obra com a irresistível pressão mecânica duma fôrça inconsciente
para o geral dos politiqueiros de todos os tempos, que vivem e morrem na doce ilusão de
dependerem os destinos dos povos da suas parvas idéias e de seus safados interêsses.
Êsses demônios de tôdas as épocas são os algôzes das nações
pelo verme roedor da desmoralização que inoculam por todos os lados da vida pública.
É mui de notar como êles se agitam para perder os verdadeiros
servidores da pátria...
Se de uma missão étnica, missão nacional, pode-se falar de raros e
seletos espíritos numa esfera qualquer, por serem êles evidentemente homens a quem coube
uma tarefa nas lutas e incertezas do viver dos povos, sem lisonja, o Barão do Rio Branco
é um dos poucos diante de quem se pode ter esta linguagem no Brasil.
Seu saber histórico-geográfico tinha de ser uma fôrça em nossa vida
de nação, integrando-nos o território ao Norte e ao Sul. Já por aí êle é
benemérito entre os que mais o possam ser.
Se a politicagem patibular e canina de crassos ignorantões não
conseguir desmanchar o mais extraordinário de seus feitos, essa esplêndida vitória do
Acre adquirido inteiro, além das mais ousadas fantasias, a trôco de algumas quantias de
dinheiro e de pequenos trechos de território à margem direita do Paraguai e à esquerda
do Madeira, terrenos aliás que são do número daqueles que, no cumprimento de antigos
tratados, tínhamos recebido da Bolívia por outros por nós decidos, se a politicagem
daninha e inqualificável não deitar a perder tão esplêndidos esforços, poder-se-á
ter por gloriosamente finda a missão que o destino reservou ao filho do velho estadista,
imortal patrono da raça negra.
A segunda nota que assinalei no historiar do môço Silva Paranhos
é o amor, a predileção irresistível por nossos fastos militares. Isto desde os mais
antigos tempos, desde sua puerícia literária. Não é, como alguém supôs, inimigo do
Exército e da Armada um escritor que tem passado a vida a estudar-lhes os feitos e a lhes
decantar a glória.
(....)
Esta vasta obra, esboçada em parte, em vários pontos escrita, é o
que o fêz mergulhar, digamos assim, no pélago ora serreno, ora revôlto do passado
brasileiro. O segrêdo dêsse passado é completamente conhecido por Silva Paranhos.
A erudição de que deu provas sobejas ao discutir Missões e Amapá -
é a garantia segura do que será a obra definitiva de Rio Branco, longa e justamente
interrompida, exatamente para correr ao serviço da pátria em tarefa que se lhe antolhou
mais urgente: Missões, Amapá e Acre.
Um operário dessa estatura, um sabedor dessa guisa impõe-se ao
respeito de todos os ânimos retos. E cumpre ainda notar que em seus estudos de
militarista professo e confesso teve de relacionar-se e conviver com as nossas maiores
figuras marciais, que lhe dispensavam carinhoso afeto e dos quais possui preciosíssima
correspondência: Caxias, Osório, Pôrto Alegre, Barroso, Tamandaré, Melgaço e vinte
outros..."
(In: HISTÓRIA DA LITERATURA BRASILEIRA, Diversas Manifestações na
Prosa - Reações Anti-Românticas na Poesia, tomo quinto, 6ª ed., org. e prefaciada
por NELSON ROMERO. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editôra, 1960, ano da
inauguração da bela BRASÍLIA-DF, p. 1751-1755, negrito meu)