Apelação na Ação Popular da Emenda Constitucional n 30/2000

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Excelentíssimo(a) Senhor(a) Doutor(a) Juiz Federal da 22ª Vara Cível Federal de São Paulo

 

 

(26/03/2001 014882)

 

 

Autos nº 2000.61.00.042050-6
Ação Popular
Autor: Carlos Perin Filho
Ré: União Federal

 

 

Carlos Perin Filho, nos autos epigrafados, inconformado com a r. Sentença de fls. 122, venho, respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, com base nos artigos 513 e seguintes do Código de Processo Civil, da mesma APELAR, conforme as RAZÕES cuja juntada e remessa ao tribunal ad quem ora fica requerida.

São Paulo, 25 de março de 2001.

 

 

Carlos Perin Filho
OAB-SP 109.649

 

---------------------------------------------------------------------------

 

Egrégio Tribunal Regional Federal da Terceira Região

 

 

 

 

Reparo merece a r. decisão do juízo singular, pois não logrou acompanhar como de costume o melhor Direito.

A parte decisória da r. Sentença é a seguir transcrita, verbis:

"(....)

É o breve relatório. Decido.

Há motivo para o indeferimento da petição inicial. Falta a esta ação, nos termos do artigo 295, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil, causa de pedir. O fundamento jurídico da petição inicial não encontra amparo nas hipóteses previstas na Constituição Federal, artigo 5º, inciso LXXIII, que justifiquem a presente ação popular. Em casos de ofensa ao patrimônio público, ao meio ambiente e ao patrimônio histórico e cultural, pode ser proposta ação popular. No caso, o pedido não se encaixa em nenhuma destas hipóteses.

Por estas razões, reconhecendo a inépcia, INDEFIRO A PETIÇÃO INICIAL, nos termos do artigo 295, parágrafo único, inciso I, do Código de Processo Civil. Nos termos do artigo 10 da Lei 4717/65, condeno o autor popular a pagar as custas processuais.

Sem reexame necessário.

Com o trânsito em julgado, arquivem-se os autos, com baixa na distribuição.

Publique-se. Registre-se. Intimem-se.

São Paulo, 15 de fevereiro de 2001.

 

LUCIANO DE SOUZA GODOY
Juiz Federal Substituto" (in fls. 122)

 

Data máxima vênia correção merece o r. decisum, pois a via eleita é adequada ao provimento jurisdicional objetivado, como restará cabalmente demonstrado no curso desta Apelação.

RODOLFO DE CAMARGO MANCUSO ensina, in verbis:

"Às vezes, é certo, a pretensão não encontra, exatamente, guarida em norma legal, mas é compatível com o sistema, cabendo lembrar que por "ordenamento jurídico" não se entende apenas o arsenal normativo, mas todos os demais subsídios jurídicos que o integram: doutrina, jurisprudência, analogia, eqüidade, princípios gerais, regras de experiência. (pg. 119)

(....)

A (im)possibilidade jurídica do pedido, portanto, enquanto condição impeditiva de conhecimento do mérito, deve ficar reservada para aquelas hipóteses em que evidentemente, aprioristicamente, à mera leitura da inicial já possa o julgador concluir que a pretensão não tem previsão sequer teórica no ordenamento ou, pior, que este a inibe expressamente. Assim pensamos, porque a cognição das condições da ação não envolve juízo de certeza, e sim de plausibilidade ou razoabilidade.

(....)

(In: AÇÃO POPULAR, RT, 3ª Ed. 1998, pg. 121)

Assim, a aparente inadequação da via eleita é reconhecível e superável na apreciação do ambiente operacional da plausibilidade ou razoabilidade do pleito, visando um resultado útil do processo, sem amarras formais despiciendas que, embora necessárias e importantes em casos individuais, não são importantes para casos coletivos, como o demandado na Ação Popular ora em Apelação.

A paraconsistência da nulidade administrativa complexa é melhor ampliada coletivamente para esta Apelação de Ação Popular com algumas considerações de Teoria Geral do Direito e do Estado, da lavra de HANS KELSEN, in verbis:

"IV. Os fundamentos epistemológicos (metafísicos) e psicológicos

A. O DUALISMO METAFÍSICO

a. A duplicação do objeto de cognição na esfera da realidade natural; a teoria da imagem

É fato peculiar e freqüentemente discutido que a cognição humana, sempre que segue aos seus impulsos originais ingênua e acriticamente, tem a tendência de duplicar o seu objeto. Isso acontece porque o homem não se satisfaz, em absoluto, com o que os seus sentidos apresentam e a sua razão compreende. Se ele tem de se deter dentro das fronteiras do que é conhecido em seu próprio ser, com a natureza tal como ele pode percebê-la e compreendê-la através das energias de sua própria alma, a sua ânsia apaixonada e essencial de conhecimento permanece insatisfeita. O desejo de penetrar na essência das coisas impele-o a indagar o que está por "trás" das coisas. E por não poder encontrar uma resposta para essa questão dentro de sua experiência, isto é, na esfera do mundo dos seus sentidos, tal como controlado e ordenado pela sua razão, ele audaciosamente supõe uma esfera além da sua experiência. Essa é a esfera que se diz ocultar os fundamentos e as causas que ele busca, as idéias e os arquétipos de todas as coisas experimentadas, as coisas como elas são, as "coisas em si", tal como existem independentemente dos sentidos e da razão, uma esfera que, por ser inacessível aos seus sentidos, é, ao mesmo tempo, considerada como eternamente vedada a ele. Esta estranha hipótese, por meio da qual o homem produz a ilusão de crescer além de si mesmo, esta curiosa tentativa do eterno Munchausen de escalar os seus próprios ombros, constitui o cerne elementar de toda a metafísica e de toda a religião. Embora esse empreendimento verdadeiramente tragicômico tenha sido, desde longa data, o orgulho do espírito humano, ele está enraizado numa curiosa desconfiança que esse espírito humano nutre por si mesmo. Apenas porque o homem evidentemente carece de confiança plena nos seus próprios sentidos e razão é que ele se inquieta neste mundo autocriado e auto-ordenado de conhecimento. É apenas essa depreciação do seu próprio eu que o induz a considerar o mundo que esse eu reconhece como sendo um mero fragmento, um pequeno grão de outro mundo que está além do seu conhecimento justamente porque e na medida em que ele é o mundo "real", "definitivo", "perfeito" e "verdadeiro".

O dualismo metafísico do "aqui e agora" e do "além", deste mundo e de outro mundo, da experiência e da transcendência, conduz à doutrina epistemológica, amplamente aceita, conhecida como teoria da imagem. Ela declara que, essencialmente, a cognição humana apenas fornece, como um espelho, uma imagem das coisas tal como elas "realmente" são, tal como são "em si mesmas". Por causa da impropriedade do material usado no espelho (os sentidos meramente humanos, a razão meramente humana), essa é uma imagem inadequada, vaga, daquela realidade ou verdade que nunca está ao alcance do homem. A importância decisiva desta comparação da cognição humana com um espelho repousa no fato de que o mundo verdadeiro e real está além do espelho, isto é, além da cognição humana, e que, seja o que for que seja compreendido em sua moldura - o mundo tal como o homem o experimenta com os seus sentidos e a sua razão -, é apenas aparência, apenas o pálido reflexo de um mundo superior, transcendente. O dualismo metafísico está tão profundamente arraigado em nosso pensamento comum que esta concepção da relação do nosso conhecer com o seu objeto, tal como determinada pela teoria dualista da imagem, é mais compreensível que qualquer outra, a despeito da sua natureza obviamente paradoxal. Ela parece até mesmo auto-evidente e, portanto, quase inerradicável. No entanto, nada é mais contraditório e, portanto, incompreensível, do que a suposição de que a nossa cognição reflete um mundo inacessível à nossa cognição. Nada é mais problemático do que explicar o que é conhecido pelo que não é, o compreensível pelo incompreensível. E não menos paradoxal é o fundo psicológico dessa situação: uma percepção diminuída do eu permite que a função do espírito degenere num ato de copiar, meramente dependente e absolutamente não criativo; ao mesmo tempo, permite que esse espírito que, no processo de conhecer, é capaz apenas de reprodução inadequada, construa, com os seus próprios meios, todo um mundo transcendente. É como se o espírito humano, embora desprezando a sua razão e os seus sentidos, compensasse a si mesmo com a sua imaginação veleidosa."

(In: TEORIA GERAL DO DIREITO E DO ESTADO, Martins Fontes, 1998, tradução de Luís Carlos Borges, págs. 599 a 601)

A duplicação do objeto referida por HANS KELSEN em teoria da imagem é melhor observada no objeto desta Apelação de Ação Popular com a assimilação da Teoria do Ordenamento Jurídico de NORBERTO BOBBIO, verbis:

"CAPÍTULO 3

A coerência do ordenamento jurídico

1. O ordenamento jurídico como sistema

No capítulo anterior falamos da unidade do ordenamento jurídico, e mostramos que se pode falar de unidade somente se se pressupõe como base do ordenamento uma norma fundamental com a qual se possam, direta ou indiretamente, relacionar todas as normas do ordenamento. O próximo problema que se nos apresenta é se um ordenamento jurídico, além de uma unidade, constitui também um sistema. Em poucas palavras, se é uma unidade sistemática. Entendemos por "sistema" uma totalidade ordenada, um conjunto de entes entre os quais existe uma certa ordem. Para que se possa falar de uma ordem, é necessário que os entes que a constituem não estejam somente em relacionamento com o todo, mas também num relacionamento de coerência entre si. Quando nos perguntamos se um ordenamento jurídico constitui um sistema, nos perguntamos se as normas que o compõem estão num relacionamento de coerência entre si, e em que condições é possível essa relação.

O problema do sistema jurídico foi até agora escassamente estudado. Juristas e filósofos do Direito falam em geral do Direito como de um sistema; mas em que consiste este sistema não fica muito claro. Podemos também, aqui, começar pela análise do conceito de sistema feita por Kelsen. Ele distingue entre os ordenamentos normativos dois tipos de sistemas, um que chama estático e outro dinâmico.

Sistema estático é aquele no qual as normas estão relacionadas umas às outras como as proposições de um sistema dedutivo, ou seja, pelo fato de que derivam umas das outras partindo de uma ou mais normas originárias de caráter geral, que têm a mesma função dos postulados ou axiomas num sistema científico. Um exemplo: Hobbes põe como fundamento de sua teoria do Direito e do Estado a máxima Pax est quaerenda (A paz deve ser procurada), e com isso quer entender que o postulado ético fundamental do homem é a necessidade de evitar a guerra e procurar a paz; dessa regra fundamental deduz ou pretende deduzir todas as principais regras da conduta humana, que chama de leis naturais. É claro então que todas essas leis formam um sistema, uma vez que são deduzidas da primeira. Uma semelhante construção de um conjunto de normas é o que Kelsen chama de "sistema estático". Pode-se dizer, em outras palavras, que num sistema desse gênero as normas estão relacionadas entre si no que se refere ao seu conteúdo.

Sistema dinâmico, por outro lado, é aquele no qual as normas que o compõem derivam umas das outras através de sucessivas delegações de poder, isto é, não através do seu conteúdo, mas através da autoridade que as colocou; uma autoridade inferior deriva de uma autoridade superior, até que chega à autoridade suprema que não tem nenhuma outra acima de si. Pode-se dizer que a relação entre as várias normas é, nesse tipo de ordenamento normativo, não material, mas formal. Um exemplo de sistema dinâmico seria aquele que colocasse no vértice do ordenamento a máxima "É preciso obedecer à vontade de Deus". Nesse caso, o fato de outras normas pertencerem ao sistema não seria determinado pelo seu conteúdo, isto é, pelo fato de que estabelecem uma certa conduta de preferência a outra, mas pelo fato de que através da passagem de uma autoridade a outra possam ser reconduzidas à autoridade divina.

A distinção entre os dois tipos de relação entre normas, a material e a formal, é constatável na experiência diária, quando, encontrando-nos na situação de ter que justificar uma ordem (e a justificação é feita inserindo-a num sistema), abrimos dois caminhos, ou seja, o de justificá-la deduzindo-a de uma ordem de abrangência mais geral ou o de atribuí-la a uma autoridade indiscutível. Por exemplo, um pai ordena ao filho que faça a lição, e o filho pergunta: "Por quê?" Se o pai responde: "Porque deves aprender", a justificação tende a construção de um sistema dinâmico. Digamos que o filho, não satisfeito, peça outra justificação. No primeiro caso perguntará: "Por que devo aprender?" A construção do sistema estático levará a uma resposta deste tipo: "Porque precisas ser aprovado". No segundo caso perguntará: "Por que devo obedecer a meu pai?" A construção do sistema dinâmico levará a uma resposta deste tipo: "Porque teu pai foi autorizado a mandar pela lei do Estado". Observem-se, no exemplo, os dois diferentes tipos de relação para passar de uma norma a outra: no primeiro caso, através do conteúdo da prescrição; no segundo caso, através da autoridade que a colocou.

Feita a distinção, Kelsen sustenta que os ordenamentos jurídicos são sistemas do segundo tipo; são sistemas dinâmicos. Sistemas estáticos seriam os ordenamentos morais. Surge aqui outro critério para a distinção entre Direito e moral. O ordenamento jurídico é um ordenamento no qual o enquadramento das normas é julgado com base num critério meramente formal, isto é, independentemente do conteúdo; o ordenamento moral é aquele cujo critério de enquadramento das normas no sistema é fundado sobre aquilo que as normas prescrevem (e não sobre a autoridade de que derivam). Mas, se é assim, parece difícil falar apropriadamente do ordenamento jurídico como de um sistema, isto é, chamar "sistema" ao sistema de tipo dinâmico com a mesma propriedade com que se fala em geral de sistema como totalidade ordenada, e em particular de um sistema estático. Que ordem pode haver entre as normas de um ordenamento jurídico, se o critério de enquadramento é puramente formal, isto é, referente não a conduta que elas regulam, mas unicamente à maneira com que foram postas? Da autoridade delegada pode emanar qualquer norma? E se pode emanar qualquer norma, pode emanar também uma norma contrária àquela emanada de uma outra autoridade delegada? Mas poderíamos ainda falar de sistema, de ordem, de totalidade ordenada num conjunto de normas no qual duas normas contraditórias fossem ambas legítimas? Num ordenamento jurídico complexo, como aquele que temos sempre sob as vistas, caracterizado pela pluralidade das fontes, parece não haver dúvida de que possam existir normas produzidas por outra. Ora, atendo-se à definição de sistema dinâmico como o sistema no qual o critério do enquadramento das normas é puramente formal, deve-se concluir que num sistema dinâmico duas normas em oposição são perfeitamente legítimas. E de fato, para julgar a oposição de duas normas é necessário examinar o seu conteúdo; não basta referir-se à autoridade da qual emanam. Mas um ordenamento jurídico que admita no seu seio entes em oposição entre si pode ainda chamar-se "sistema"? Como se vê, que um ordenamento jurídico constitua um sistema, sobretudo se se partir da identificação do ordenamento jurídico com o sistema dinâmico, é tudo, menos óbvio. Ou, pelo menos, cumpre precisar, se se quiser continuar a falar de sistema normativo em relação ao Direito, em qual sentido, em quais condições e dentro de quais limites se pode falar dele.

(...)

8. O dever da coerência

Todo o discurso defendido neste capítulo pressupõe que a incompatibilidade entre duas normas seja um mal a ser eliminado e, portanto, pressupõe uma regra de coerência, que poderia ser formulada assim: "Num ordenamento jurídico não devem existir antinomias". Mas essa regra é por sua vez uma regra jurídica? O dever de eliminar as antinomias é um dever jurídico? Poder-se-á dizer que uma regra assim pertence ao ordenamento jurídico, mesmo se não-expressa? Existirão argumentos suficientes para considerar que em cada ordenamento esteja implícita a proibição de antinomias, e que caiba ao intérprete somente torná-la explícita? Coloco por último esta pergunta porque se considera normalmente que a proibição das antinomias é uma regra do sistema, mas não se aprofunda nem em natureza, nem em alcance, nem em eficácia.

Uma regra que se refere às normas de um ordenamento jurídico, como o é a proibição de antinomias, pode ser dirigida apenas àqueles que têm relação com a produção e aplicação das normas, em particular ao legislador, que é o produtor por excelência, e ao juiz, que é o aplicador por excelência. Dirigida aos produtores de normas, a proibição soa assim: "Não deveis criar normas que sejam incompatíveis com outras normas do sistema". Dirigida aos aplicadores, a proibição assume esta outra forma: "Se vocês esbarrarem em antinomias, devem eliminá-las". Trata-se agora de ver se e em quais situações existem uma ou outra dessas duas normas, ou ambas:

Suponhamos três casos:

1) O de normas de diferentes níveis, dispostas hierarquicamente. Neste caso, geralmente, a regra da coerência existe em ambas as formas:

a) a pessoa ou o órgão autorizado a formular normas inferiores é levado a estabelecer normas que não estejam em oposição a normas superiores (pense-se na obrigação de quem tem um poder regulamentar ou um poder negocial de exercitar este poder dentro dos limites estabelecidos pelas normas superiores);

b) o juiz, quando se encontrar frente a um conflito entre uma norma superior e uma norma inferior, será levado a aplicar a norma superior.

2) O caso das normas do mesmo nível, sucessivas no tempo. Neste caso não existe dever algum de coerência por parte do legislador, enquanto existe, por parte do juiz, o dever de resolver a antinomia, eliminando a norma anterior e aplicando a posterior. Existe, portanto, a regra da coerência na segunda forma, isto é, dirigida aos juízes, mas não na primeira (dirigida ao legislador):

a) o legislador ordinário é perfeitamente livre para formular sucessivamente normas em oposição entre si: isso está previsto, por exemplo, no artigo 15 das Disposições preliminares, já citado, no qual se admite a ab-rogação implícita, isto é, a legitimidade de uma lei posterior em oposição a uma anterior.

b) mas quando a oposição se verifica, o juiz deve eliminá-la, aplicando, das duas normas, a posterior. Pode-se dizer também assim: o legislador é perfeitamente livre para contradizer-se, mas a coerência é salva igualmente, porque, das duas normas em oposição, uma cai e somente a outra permanece válida.

3) O caso das normas de mesmo nível, contemporâneas (por exemplo, a formulação de um código, de um texto único ou de uma lei que regula toda uma matéria). Também aqui não há nenhuma obrigação juridicamente qualificada, por parte do legislador, de não contradizer-se, no sentido de que uma lei, que contenha disposições contraditórias, é sempre uma lei válida, e são válidas, também, ambas as disposições contraditórias. Podemos falar, quando muito, nas relações do legislador, de um dever moral de não contradizer-se, em consideração ao fato de que uma lei contraditória torna mais difícil, e às vezes vã, a administração da justiça. Quanto ao juiz, que se encontra frente a uma antinomia entre normas, por exemplo, de um código, ele também não tem nenhum dever juridicamente qualificado de eliminar a antinomia. Simplesmente, no momento em que duas normas antinômicas não puderem ser ambas aplicadas no mesmo caso, ele se encontrará na necessidade de aplicar uma e desaplicar a outra. Mas trata-se de uma necessidade de fato, não de uma obrigação (ou de uma necessidade moral). Tanto é verdade que as duas normas antinômicas continuaram a subsistir no ordenamento, lado a lado, e o próprio juiz num caso posterior ou outro juiz no mesmo caso (por exemplo, um juiz de segunda instância) podem aplicar, das duas normas antinômicas, aquela que anteriormente não foi aplicada ou vice-versa.

Resumindo, nos três casos apresentados, o problema de uma pressuposta regra da coerência resolve-se de três maneiras diferentes: no primeiro caso, a regra da coerência vale em ambas as formas: no segundo, vale somente na segunda forma; no terceiro, não vale nem na primeira, nem na segunda forma, isto é, não existe nenhuma regra da coerência. Dessa colocação podemos tirar luz para iluminar um problema controvertido: a compatibilidade é uma condição necessária para a validade de uma norma jurídica? Aqui devemos responder negativamente, pelo menos em relação ao terceiro caso, isto é, ao caso de normas de mesmo nível e contemporâneas, no qual, como vimos, não existe nenhuma regra de coerência. Duas normas incompatíveis do mesmo nível e contemporâneas são ambas válidas. Não podem ser, ao mesmo tempo, ambas eficazes, no sentido de que a aplicação de uma ao caso concreto exclui a aplicação da outra; mas são ambas válidas, no sentido de que, apesar de seu conflito, ambas continuam a existir no sistema, e não há remédio para sua eliminação (além, é claro, da ab-rogação legislativa).

A coerência não é condição de validade, mas é sempre condição para a justiça do ordenamento. É evidente que quando duas normas contraditórias são ambas válidas, e pode haver indiferentemente a aplicação de uma ou de outra, conforme o livre-arbítrio daqueles que são chamados a aplicá-las, são violadas duas exigências fundamentais em que se inspiram ou tendem a inspirar-se os ordenamentos jurídicos: a exigência da certeza (que corresponde ao valor da paz ou da ordem), e a exigência da justiça (que corresponde ao valor da igualdade). Onde existem duas normas antinômicas, ambas válidas, e portanto ambas aplicáveis, o ordenamento jurídico não consegue garantir nem a certeza, entendida como possibilidade, por parte do cidadão, de prever com exatidão as conseqüências jurídicas da própria conduta, nem a justiça, entendida como o igual tratamento das pessoas que pertencem à mesma categoria. Há um episódio em I promissi sposi (Os noivos) que ilustra muito bem as razões morais pelas quais é bom que não haja antinomias no Direito. É o episódio do homicídio praticado por frei Cristóvão (também chamado Ludovico). A rixa, seguida por um duplo homicídio, havia nascido porque "os dois (Ludovico e seu adversário) caminhavam rente ao muro, mas Ludovico (notem bem) esbarrava nele com o lado direito, e isso, segundo o costume, dava-lhe o direito (até onde se vai enfiar o direito!) de não ter de se afastar do dito muro para dar passagem a quem quer que fosse, coisa da qual se fazia, então, muita questão. o outro pretendia, ao contrário, que tal direito coubesse a si próprio, como nobre que era, e que Ludovico tivesse que andar pelo meio, e isso por causa de outro costume. Porque nisso, como acontece em muitos outros negócios, estavam em vigor dois costumes contrários, sem que fosse decidido qual dos dois era o certo, o que dava oportunidade de fazer uma guerra cada vez que um cabeça-dura encontrasse outro da mesma têmpera"."

(In: TEORIA DO ORDENAMENTO JURÍDICO, Ed. UNB, 10ª ed., 1999, tradução de Maria Celeste Cordeiro Leite dos Santos, pgs. 71/4 e 110/4)

Ao combinar as doutrinas de HANS KELSEN e NORBERTO BOBBIO e aplicar ao caso deste popular remédio jurídico genérico no hipercontexto das demais ações populares de minha autoria civil e/ou patrocínio advocatício, temos o seguinte diálogo exemplificativo:

Por hipótese, dois irmãos gêmeos e gênios - concebidos segundo moderna engenharia genética - "KELSEN" e "BOBBIO" - concluem com honras ao mérito a Faculdade de Direito, passam empatados em primeiro lugar nacional no concurso da Ordem dos Advogados do Brasil e um decide ser Juiz - "KELSEN", e outro Advogado - "BOBBIO".

"KELSEN", após aprovação em primeiro lugar no concurso público para Juiz e "BOBBIO" após inaugurar sua firma de Advocacia, desfrutam uma volta lunar terrestre de deliciosas viagens por aquele planeta e, ao retornar à realidade brasileira travam o seguinte diálogo jurídico limítrofe:

"BOBBIO" - Querido "KEL", o que foi dito foi dito, e o que foi feito também, mas tem certas coisas que não dá para entender, sendo um bom exemplo o artigo 78 da Constituição Federal brasileira, com redação da Emenda Constitucional nº 30.

"KELSEN" - Você quer dizer aquele artigo vulgarmente conhecido como o ‘calote’?

"BOBBIO" - Esse mesmo!

"KELSEN" - Ah! Esse artigo é uma delícia para discutir juridicamente e Eu tenho uma percepção jurídica um pouco diferente daquela simples concepção vulgar do ‘calote’ trabalhada pelos(as) nossos(as) Nobres Colegas Operadores do Direito, com base na minha teoria da duplicação da imagem e na sua teoria do ordenamento jurídico.

"BOBBIO" - Meus Clientes estão reclamando alguma providência, pois não gostam da idéia de passar algumas voltas terrestres solares sem os seus direitos líquidos e certos.

"KELSEN" - Clientes, ora Clientes. Eles(as) devem pensar em Todos(as), não apenas nos próprios ‘umbigos’!

"BOBBIO" - Você diz isso porque é Juiz... o que diria se fosse Advogado?

"KELSEN" - Diria que esta parece ser uma nulidade admistrativa complexa resultante de um problema metafísico de origens no dualismo administrativo histórico na Administração Pública brasileira, decorrente da incorreta duplicação da imagem refletida no artigo 33 do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias e que resultou nas antinomias vulgarmente conhecidas por ‘calote’ do artigo 78, com redação da Emenda Constitucional nº 30/2000.

"BOBBIO" - Meus Clientes provavelmente não entenderão essa terminologia jurídica e filosófica sofisticada... vamos tentar traduzir para linguagem popular... ao popular pé da letra Você disse ‘incorreta duplicação da imagem refletida no artigo 33’?

"KELSEN" - Isso mesmo, meu caro "BOB", o problema considerado em sua raiz não está no ‘calote’ em si mesmo, mas nas causas do ‘calote’: estas devem ser corrigidas, pois representam uma duplicação indevida dos princípios constitucionais que garantem a propriedade privada, bem como repercutem em antinomias para todos os sistemas do Ordenamento Jurídico que guardem obrigações naquelas condições. Aqui vale lembrar também, no contexto da defesa da propriedade pública e/ou privada, aquela tese das taxas de juros reais, auto-aplicáveis interna corporis... lembra?

"BOBBIO" - Como poderia me esquecer, foi resultado daquela nossa viagem pelo planeta Terra...? Isso implica reanalisar juridicamento, agora nesse contexto global e de Ordenamento, a questão popularmente conhecida como ‘Escândalo dos Precatórios’. É sem dúvida uma questão moral complexa, querido ‘KEL’...

"KELSEN" - Isso mesmo meu caro ‘BOB’, como notável Advogado Você tocou no popular ‘ponto G’: o fundamento constitucional para correção das antinomias decorrentes das imagens incorretamente duplicadas ou, em poucas e outras palavras, a moralidade administrativa, nos termos do artigo 37 da Constituição Federal.

"BOBBIO" - Agora só me resta uma dúvida instrumental substancial: Qual o melhor remédio jurídico genérico para corrigir as incorretas duplicações da imagem dos princípios constitucionais que defendem a propriedade e a moralidade e compor a harmonia das antinomias decorrentes do ‘escândalo dos precatórios’ que repercutem sobre o ‘calote’?

"KELSEN" - Penso que tais nulidades administrativas complexas devem ser discutidas judicialmente por meio da Ação Popular e/ou Ação Civil Pública, cujas legitimidades ativas são atribuídas a qualquer Cidad(ã)o brasileiro(a) ou ao Ministério Público. O resto é por sua conta, meu caro Advogado!

Do hipotético diálogo limítrofe acima elaborado, resta serem as Ações Populares propostas por este Cidadão (Taxas de Juros Reais e Federalização da Dívida Pública Nula) plausíveis e razoáveis para administrar Justiça às nulidades administrativas complexas evidenciadas.

Do exposto requeiro a reforma da r. Sentença para os fins da exordial, com o retorno dos autos ao juízo a quo para o due process of law, com a citação da Apelada e abertura de vistas ao Ministério Público.

São Paulo, 25 de março de 2001.
179º da Independência e 113º da República Federativa do Brasil

 

Carlos Perin Filho
OAB-SP 109.649

 

E.T.: Nome e assinaturas não conferem frente aos documentos apresentados com exordial em função da reconfiguração de direito em andamento, nos termos da Ação Popular nº 98.0050468-0, 11ª Vara Federal de São Paulo, ora em grau de Apelação, sob a relatoria do Desembargador Federal ANDRADE MARTINS, em autos sob nº 2000.03.99.030541-5 - www.trf3.gov.br -


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