"A lógica deôntica é uma das muitas lógicas desenvolvidas a
partir da lógica clássica, sendo considerada uma lógica complementar a esta. De um
lado, porque observa as principais regras de inferência que caracterizam a lógica
clássica, quais sejam, as chamadas Leis do Pensamento; de outro lado, porque os
operadores de que se utilizam (obrigatório, proibido, permitido), permitem uma maior
capacidade de expressão do que aqueles baseados unicamente na lógica tradicional.
As lógicas complementares alargam o âmbito de aplicação da lógica
clássica. Os operadores que utilizam modificam o aparato lingüístico sob o ponto de
vista sintático, embora não alterem nada de essencial do ponto de vista semântico.
Também neste âmbito, as modificações são suplementares e visam
tão somente a maior adequação às relações sintáticas expressas pelos novos
operadores.
Ao lado dos sistemas lógicos complementares à lógica clássica, há
os chamados sistemas divergentes, rivais daquela, como aqueles denominados sistemas
lógicos paraconsistentes, os quais tem sido desenvolvidos com o propósito de substituir
os sistemas clássicos em determinadas situações, onde a lógica clássica tem se
mostrado insuficiente.
Algumas dessas lógicas paraconsistentes - as mais conhecidas -
distinguem-se da lógica clássica exatamente por derrogarem pelo menos um de seus
princípio (sic), os quais indicou-se anteriormente por Leis de Pensamento.
A primeira destas lógicas heterodoxas denomina-se lógica
não-reflexiva, e caracteriza-se por colocar em cheque o princípio da identidade.
Uma segunda lógica é a denominada paracompleta; nesta, a lei do
terceiro excluído é derrogada, admitindo-se Conseqüentemente que duas proposições
contraditórias, A e ~A sejam ambas falsas.
Ao lado destes sistemas paracompletos, há as lógicas
paraconsistentes, cuja base é a derrogação do princípio da contradição.
Um sistema lógico estruturado conforme o princípio da contradição
afirma de duas proposições A e ~A que, se uma for verdadeira, a outra é falsa.
No esquema exposto por Newton DA COSTA, uma teoria dedutiva T, cuja
linguagem contenha um símbolo para a negação, é dita inconsistente se o conjunto de
seus teoremas contém ao menos dois deles, um dos quais sendo a negação do outro. Sendo
A e ~A tais teoremas, ambos integrantes de um mesmo sistema lógico, apresenta uma
contradição. A teoria T chama-se trivial (ou supercompleta) se todas as proposições
formuláveis em sua linguagem forem teoremas de T, ou dito de outra forma, se tudo o que
puder ser expresso na linguagem T puder ser provado em T.
Inconsistência e trivialidade não significam a mesma coisa, mas no
âmbito da lógica clássica são considerados conceitos equivalentes, uma vez que um
deles implica o outro.
Assim a presença de uma contradição trivializa T, ou seja, se em um
único sistema de lógica clássica forem derivadas duas sentenças, uma das quais sendo a
negação da outra, então qualquer sentença exprimível na linguagem T pode ser derivada
em T.
Dito de outra forma, nas lógicas ditas clássicas, em geral, é
válido o princípio ex falso sequitur quod libet, formalmente expresso pela
fórmula (A & ~A) - > B, que indica que "de uma falsidade, tudo se
segue". Ou, tomando-se em consideração a idéia da contradição, "de uma
contradição, qualquer coisa pode ser concluída".
Se tudo se pode concluir de uma falsidade ou de uma contradição,
pode-se provar qualquer coisa, e será impossível distinguir o falso do verdadeiro, de
forma que, desde o ponto de vista da lógica clássica, um sistema trivial é inútil,
porque se a partir dele tudo se pode afirmar, ele não acrescenta nenhuma informação.
As lógicas paraconsistentes buscam obstaculizar essa implicação
entre inconsistência e trivialidade, de forma que em um sistema se possam admitir
determinadas contradições sem que com isso se "contamine" o sistema como um
todo. São portanto sistemas lógicos capazes de fundamentar teorias inconsistentes e não
triviais. Assim, admite-se proposições contraditórias sem que por isso o sistema perca
seu valor científico.
Em um artigo denominado Normative Logics, Morality and Law,
Leila Zardo PUGA, Newton da COSTA e Roberto VERNENGO partem de duas constatações que por
si só, defendem eles, justificam a utilização de sistemas lógicos paraconsistentes no
direito.
De um lado, entendem que em sua grande maioria, os corpus
normativos legais, que compõem em grande parte o arcabouço legislativo de direito
contemporâneo, contêm normas que implicam contradições; por exemplo, uma mesma ação
é regulada como obrigatória e, ao mesmo tempo, como proibida. Ou então, em certas
circunstâncias, uma mesma ação é de um lado caracterizada como obrigatória e ao mesmo
tempo como não devida (proibida).
Estas circunstâncias ficam mais evidentes quando está-se frente a
dilemas deônticos, caracterizados quando uma pessoa deve cumprir uma ação que ela, ao
mesmo tempo, não está obrigada a desempenhar.
Assim, por exemplo, no caso de aborto espontâneo, particularmente
quando o feto e a mãe competem pela sobrevivência, isto é, quando apenas um deles
poderá sobreviver. Está-se diante de um dilema moral, e estes normalmente ensejam
conflitos normativos que um ordenamento comumente não consegue resolver.
A segunda aplicação vislumbrada pelos autores citados diz respeito
às lacunas legais e aos muitos conceitos vagos e ambíguos de que se utiliza o direito -
e não só ele - na definição de seus conceitos legais.
Em diferentes circunstâncias em que se utiliza um mesmo signo
lingüístico, este adquire diferentes conotações em função de se (sic) uso, das
situações em que é definido, e assim por diante. Sistemas formalizados neste caso
apresentariam a vantagem de contar com a precisão dos componentes do sistema e dos
operadores, formalmente traduzidos, com a vantagem de que, no sistema lógico
paraconsistente, a admissão de uma contradição não faz desmoronar todo o sistema.
Como já foi explicitado, a lógica clássica, e mesmo a lógica
deôntica complementar a esta, não admite contradições sem que com isso todo o sistema
entre em colapso. Dito de outra forma, a lógica clássica não abarca e tampouco admite
contradições que, consideram estes autores, são imanentes entre outras, ao direito e à
moral.
Nesse contexto é que se considera a utilidade das lógicas
paraconsistentes, e especialmente no caso do direito, a lógica deôntica paraconsistente,
que, embora ainda formalmente incipiente, busca justamente a elaboração de sistemas
lógicos que admitam contradições, sem que dessa assunção decorra a trivialidade do
sistema como um todo.
De fato, hoje admite-se que o direito abarca contradições, mas, de
formas variadas, diversos pensadores vem relativizando estes "problemas"
utilizando-se de conceitos variáveis de sistema, de unidade do ordenamento, e da própria
completude do direito.
Admite-se que a coerência é propriedade não do ordenamento como um
todo, mas de suas diversas partes (Tércio FERRAZ JR. Norberto BOBBIO).
Nesse contexto, o desenvolvimento de sistemas deônticos
paraconsistentes pode ser de grande utilidade porque através da formalização torna-se
mais fácil identificar a existência de paradoxos e enunciados que implicam sentenças
contraditórias, as quais a utilização da linguagem natural, por suas limitações, não
revela.
Observa-se que se fala em pluralidade de sistemas lógicos
paraconsistentes. Isto porque, como não há no estudo da lógica deôntica um único
sistema capaz de explicar e formalizar todo o direito, da mesma forma ocorre com as
lógicas paraconsistentes. Não há apenas uma, e tampouco as lógicas paracompletas e
não-reflexivas expressam a totalidade das lógicas heterodoxas.
A discussão quanto ao objeto, à função e distinção das normas e
das proposições normativas, suas estrutura, a possibilidade de aplicação dos
princípio (sic) lógicos às normas, e sua adequada formalização, também estão
presentes quando se tem em conta a perspectiva da formalização de um sistema lógico
paraconsistente.
Também aqui se discutem os operadores que compõe a lógica deôntica,
e a perspectiva de uma lógica multivalorativa que proponha outros valores além do
verdadeiro ou falso, ou mesmo do válido ou inválido, conforme o caso.
A premissa que une as diversas propostas que já apareceram e que
continuam a surgir neste campo, é a possibilidade de construção de uma lógica onde
admita-se a existência de contradição sem que com isso o sistema perca sua utilidade.
Dito de outra forma, uma lógica inconsistente, mas não trivial.
É nesse sentido que pode estar se abrindo um novo caminho para que
(sic) o direito, mesmo com contradições e lacunas que traduzem a própria complexidade
das relações sociais. Nessa perspectiva, a lógica deôntica paraconsistente passa a ser
instrumento importantíssimo de análise do próprio direito e da ciência
jurídica." (in PARADOXOS DA AUTO-OBSERVAÇÃO - PERCURSOS DA TEORIA JURÍDICA
CONTEMPORÂNEA, org. LEONEL SEVERO ROCHA, JM Editora, Curitiba, 1997, p. 89/92)