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Excelentíssimo(a) Senhor(a) Doutor(a) Juiz(a) Federal da 9ª Vara da
Seção da Justiça Federal de São Paulo
(protocolo 31JUL 125200 030997)
Autos nº 1999.61.00.025445-6
Ação Popular
Autor: Carlos Perin Filho
Réus: União Federal e Ots.
Carlos Perin Filho, nos autos da ação em epígrafe, venho,
respeitosamente, à presença de Vossa Excelência, em ilustração ao conhecimento
jurisdicional, apresentar as seguintes matérias, doutrinas e comentários:
A matéria objeto desta actio popularis é cinematograficamente
conhecida, pois paraísos fiscais existem deste a antiga Grécia, nas pequenas ilhas
vizinhas de Atenas, onde comerciantes, fazendo um desvio de vinte milhas, armazenavam
mercadorias para salvar dois por cento de imposto sobre importações (cf. LAURENT
LESERVOISIER in OS PARAÍSOS FI$CAI$, Publicações Europa-América, 1990, do
original Les Paradis Fiscaux, ISBN 972-1-03326-X), porém a lógica tradicional
evoluiu em paralelo à singela presença virtual em paraísos fiscais por caixas postais,
oferecendo a lógica paraconsistente aplicada, como ensina NEWTON C. A. DA COSTA, in
verbis:
"3.3 LÓGICA PARACONSISTENTE MODELANDO O CONHECIMENTO HUMANO
No mundo em que vivemos é comum depararmos com inconsistências em
nosso cotidiano. Para simplificar o entendimento da proposta e o significado da lógica
paraconsistente, realçando a importância de sua aplicação em situações em que a
lógica clássica é incapaz de gerar bons resultados, são discutidos nessa seção
alguns exemplos.
Em todos os exemplos que serão apresentados, as situações de
insonsistências e as indefinições estão presentes. O objetivo é mostrar que a lógica
paraconsistente pode ser aplicada para modelar conhecimentos por meio de procura de
evidências, de tal forma que os resultados obtidos são aproximados do raciocínio
humano.
Exemplo 1: Numa reunião de condomínio, para decidir uma
reforma no prédio, nem sempre as opiniões dos condôminos são unânimes. Se sempre
houvesse unanimidade, isso facilitaria muito a decisão do síndico. Alguns querem a
reforma, outras não, gerando contradições. Outros nem mesmo têm opinião formada,
gerando indefinições. A análise detalhada de todas as opiniões, contraditórias,
indefinidas, contra e a favor, pode originar buscas de outras informações para gerar uma
decisão de aceitação ou não da reforma do prédio. A decisão tomada vai ser baseada
nas evidências trazidas pelas diferentes opiniões.
Exemplo 2: Um administrador, chefe de uma equipe, que tem a
missão de promover um de seus funcionários, deve avaliar várias informações antes de
deferir o pedido. As informações provavelmente virão de várias fontes: departamento
pessoal, chefia direta, colegas de trabalho etc. É de se prever que essas informações
vindas de várias fontes podem ser conflitantes, imprecisas, totalmente favoráveis ou
ainda totalmente contrárias. Compete ao administrador a análise dessas múltiplas
informações para tomar uma decisão de deferimento ou indeferimento. Com todas as
informações o administrador pode ainda considerar as informações insuficientes ou
então totalmente contraditórias; nesse caso, novas informações deverão ser buscadas.
Como foi visto nos dois exemplos anteriores, a principal
característica do comportamento humano é tomar decisões conforme os estímulos
recebidos provenientes das variações de seu meio ambiente. Na realidade, as variações
das condições ambientais são muitas e, às vezes, inesperadas, resultando em estímulos
quase sempre contraditórios. Em face disso, é necessária a utilização de uma lógica
que contemple todas essas variações e não apenas duas, como faz a lógica tradicional
ou clássica. Portanto, fica claro que há algumas situações em que a lógica clássica
é incapaz de tratar adequadamente os sinais lógicos envolvidos. É nesses casos que os
circuitos e sistemas computacionais lógicos, que utilizam a lógica binária, ficam
impossibilitados de qualquer ação e não podem ser aplicados. Por conseguinte,
necessitamos buscar sistemas lógicos em que se permita manipular diretamente toda essa
faixa de informações e assim descreva não um mundo binário, mas real.
Exemplo 3: Um operário que atravessa uma sala para realizar
determinado serviço em uma indústria pode ter seus óculos inesperadamente embaçados
pela poluição ou pelo vapor. Sua atitude mais provável é parar e fazer a limpeza em
suas lentes para depois seguir em frente. Esse é um caso típico de indefinição nas
informações. O operário foi impedido de avançar por falta de informações oriundas de
seus sensores da visão sobre o ambiente. Por outro lado, o operário pode, ao atravessar
a sala na obscuridade, deparar com uma porta de vidro que emita reflexo da luz ambiental,
confundindo sua passagem pelo ambiente. Esse é um caso típico de inconsistência, porque
as informações foram detectadas por seus sensores da visão com duplo sentido. O
comportamento normal do operário é parar, olhar mais atentamente. Caso seja necessário,
deve modificar o ângulo de visão, deslocando-se de lado para diminuir o efeito
reflexivo; somente quando tiver certeza, vai desviar da porta de vidro e seguir em frente.
Exemplo 4: Um quarto exemplo em que aparecem situações
contraditórias e indeterminadas pode ser descrito do seguinte modo:
Uma pessoa que está prestes a atravessar uma região pantanosa recebe
uma informação visual de que o solo é firme. Essa informação tem como base a
aparência da vegetação rasteira a sua frente. Essa informação, vinda de seus sensores
da visão, dá um grau de crença elevado à afirmativa: "pode pisar o solo
sem perigo". Não obstante, com o auxílio de um pequeno galho de árvore, testa
a dureza do solo e verifica que o mesmo não é tão firme como parecia.
Nesse exemplo, o teste com os sensores do tato indicou um grau de crença
menor do que o obtido pelos sensores da visão. Podemos atribuir arbitrariamente um valor
médio de grau de crença da afirmativa: "pode pisar o solo sem perigo".
Essas duas informações constituem um grau de conflito que faria a
pessoa ficar com certa dúvida, quanto à decisão de avançar ou não. A atitude mais
óbvia a tomar é procurar novas informações ou evidências que podem aumentar ou
diminuir o valor do grau de crença que foi atribuído às duas primeiras
medições. A procura de novas evidências, como efetuar novos testes com o galho, jogar
uma pedra etc., vai fazer variar o valor do grau de credibilidade. Percebendo que as
informações ainda não são suficientes, portanto consideradas indefinidas, é provável
que essa pessoa vá avançar com cautela e fazer novas medições, buscando outras
evidências que a ajudem na tomada de decisão. A conclusão dessas novas medições pode
ser um aumento no valor do grau de credibilidade para 100%, o que faria avançar com toda
confiança, sem nenhum temor. Por outro lado, a conclusão pode ser uma diminuição no
valor do grau de credibilidade, obrigando-a a procurar outro caminho.
A lógica paraconsistente pode modelar o comportamento humano
apresentado nesses exemplos e assim ser aplicada em sistemas de controle, porque se
apresenta mais completa e mais adequada para tratar situações reais, com possibilidades
de, além de tratar inconsistências, também contemplar a indefinição." (in
Lógica Paraconsistente Aplicada, em co-autoria de JAIR MINORO ABE, JOÃO I. DA SILVA,
AFRÂNIO CARLOS MUROLO e CASEMIRO FERNANDO S. LEITE, Atlas, 1999, p. 37/9)
A lógica paraconsistente em máquinas com inteligência artificial é
cinematograficamente representada na produção de MICHAEL DEELEY & RIDLEY SCOTT, in
BLADE RUNNER, com Replicantes da série Nexus-6 em drama existencial de ser besta e dever
ser mais que humano, como empresas off-shore replicantes em paraísos fiscais que são
lavanderias e devem ser núcleos de globalização democrática do capital financeiro,
como foram as vizinhas de Atenas, cujas mulheres, idolatradas por pátridas e/ou
apátridas, são também musas da Música Popular Brasileira, na verbis limítrofe
de CHICO BUARQUE, chamada carinhosamente de "Cornélia" na obra cinematográfica
de SYDNEY POLLACK, apresentada anteriormente.
A lógica paraconsistente supra exemplificada é muito
importante para o oportuno e conveniente desenvolvimento também do Direito, conforme
ensina CLAUDIA MARIA BARBOSA, in verbis:
"[5] A contribuição da lógica paraconsistente
A lógica deôntica é uma das muitas lógicas desenvolvidas a
partir da lógica clássica, sendo considerada uma lógica complementar a esta. De um
lado, porque observa as principais regras de inferência que caracterizam a lógica
clássica, quais sejam, as chamadas Leis do Pensamento; de outro lado, porque os
operadores de que se utilizam (obrigatório, proibido, permitido), permitem uma maior
capacidade de expressão do que aqueles baseados unicamente na lógica tradicional.
As lógicas complementares alargam o âmbito de aplicação da lógica
clássica. Os operadores que utilizam modificam o aparato lingüístico sob o ponto de
vista sintático, embora não alterem nada de essencial do ponto de vista semântico.
Também neste âmbito, as modificações são suplementares e visam
tão somente a maior adequação às relações sintáticas expressas pelos novos
operadores.
Ao lado dos sistemas lógicos complementares à lógica clássica, há
os chamados sistemas divergentes, rivais daquela, como aqueles denominados sistemas
lógicos paraconsistentes, os quais tem sido desenvolvidos com o propósito de substituir
os sistemas clássicos em determinadas situações, onde a lógica clássica tem se
mostrado insuficiente.
Algumas dessas lógicas paraconsistentes - as mais conhecidas -
distinguem-se da lógica clássica exatamente por derrogarem pelo menos um de seus
princípio (sic), os quais indicou-se anteriormente por Leis de Pensamento.
A primeira destas lógicas heterodoxas denomina-se lógica
não-reflexiva, e caracteriza-se por colocar em cheque o princípio da identidade.
Uma segunda lógica é a denominada paracompleta; nesta, a lei do
terceiro excluído é derrogada, admitindo-se Conseqüentemente que duas proposições
contraditórias, A e ~A sejam ambas falsas.
Ao lado destes sistemas paracompletos, há as lógicas
paraconsistentes, cuja base é a derrogação do princípio da contradição.
Um sistema lógico estruturado conforme o princípio da contradição
afirma de duas proposições A e ~A que, se uma for verdadeira, a outra é falsa.
No esquema exposto por Newton DA COSTA, uma teoria dedutiva T, cuja
linguagem contenha um símbolo para a negação, é dita inconsistente se o conjunto de
seus teoremas contém ao menos dois deles, um dos quais sendo a negação do outro. Sendo
A e ~A tais teoremas, ambos integrantes de um mesmo sistema lógico, apresenta uma
contradição. A teoria T chama-se trivial (ou supercompleta) se todas as proposições
formuláveis em sua linguagem forem teoremas de T, ou dito de outra forma, se tudo o que
puder ser expresso na linguagem T puder ser provado em T.
Inconsistência e trivialidade não significam a mesma coisa, mas no
âmbito da lógica clássica são considerados conceitos equivalentes, uma vez que um
deles implica o outro.
Assim a presença de uma contradição trivializa T, ou seja, se em um
único sistema de lógica clássica forem derivadas duas sentenças, uma das quais sendo a
negação da outra, então qualquer sentença exprimível na linguagem T pode ser derivada
em T.
Dito de outra forma, nas lógicas ditas clássicas, em geral, é
válido o princípio ex falso sequitur quod libet, formalmente expresso pela
fórmula (A & ~A) - > B, que indica que "de uma falsidade, tudo se
segue". Ou, tomando-se em consideração a idéia da contradição, "de uma
contradição, qualquer coisa pode ser concluída".
Se tudo se pode concluir de uma falsidade ou de uma contradição,
pode-se provar qualquer coisa, e será impossível distinguir o falso do verdadeiro, de
forma que, desde o ponto de vista da lógica clássica, um sistema trivial é inútil,
porque se a partir dele tudo se pode afirmar, ele não acrescenta nenhuma informação.
As lógicas paraconsistentes buscam obstaculizar essa implicação
entre inconsistência e trivialidade, de forma que em um sistema se possam admitir
determinadas contradições sem que com isso se "contamine" o sistema como um
todo. São portanto sistemas lógicos capazes de fundamentar teorias inconsistentes e não
triviais. Assim, admite-se proposições contraditórias sem que por isso o sistema perca
seu valor científico.
Em um artigo denominado Normative Logics, Morality and Law,
Leila Zardo PUGA, Newton da COSTA e Roberto VERNENGO partem de duas constatações que por
si só, defendem eles, justificam a utilização de sistemas lógicos paraconsistentes no
direito.
De um lado, entendem que em sua grande maioria, os corpus
normativos legais, que compõem em grande parte o arcabouço legislativo de direito
contemporâneo, contêm normas que implicam contradições; por exemplo, uma mesma ação
é regulada como obrigatória e, ao mesmo tempo, como proibida. Ou então, em certas
circunstâncias, uma mesma ação é de um lado caracterizada como obrigatória e ao mesmo
tempo como não devida (proibida).
Estas circunstâncias ficam mais evidentes quando está-se frente a
dilemas deônticos, caracterizados quando uma pessoa deve cumprir uma ação que ela, ao
mesmo tempo, não está obrigada a desempenhar.
Assim, por exemplo, no caso de aborto espontâneo, particularmente
quando o feto e a mãe competem pela sobrevivência, isto é, quando apenas um deles
poderá sobreviver. Está-se diante de um dilema moral, e estes normalmente ensejam
conflitos normativos que um ordenamento comumente não consegue resolver.
A segunda aplicação vislumbrada pelos autores citados diz respeito
às lacunas legais e aos muitos conceitos vagos e ambíguos de que se utiliza o direito -
e não só ele - na definição de seus conceitos legais.
Em diferentes circunstâncias em que se utiliza um mesmo signo
lingüístico, este adquire diferentes conotações em função de se (sic) uso, das
situações em que é definido, e assim por diante. Sistemas formalizados neste caso
apresentariam a vantagem de contar com a precisão dos componentes do sistema e dos
operadores, formalmente traduzidos, com a vantagem de que, no sistema lógico
paraconsistente, a admissão de uma contradição não faz desmoronar todo o sistema.
Como já foi explicitado, a lógica clássica, e mesmo a lógica
deôntica complementar a esta, não admite contradições sem que com isso todo o sistema
entre em colapso. Dito de outra forma, a lógica clássica não abarca e tampouco admite
contradições que, consideram estes autores, são imanentes entre outras, ao direito e à
moral.
Nesse contexto é que se considera a utilidade das lógicas
paraconsistentes, e especialmente no caso do direito, a lógica deôntica paraconsistente,
que, embora ainda formalmente incipiente, busca justamente a elaboração de sistemas
lógicos que admitam contradições, sem que dessa assunção decorra a trivialidade do
sistema como um todo.
De fato, hoje admite-se que o direito abarca contradições, mas, de
formas variadas, diversos pensadores vem relativizando estes "problemas"
utilizando-se de conceitos variáveis de sistema, de unidade do ordenamento, e da própria
completude do direito.
Admite-se que a coerência é propriedade não do ordenamento como um
todo, mas de suas diversas partes (Tércio FERRAZ JR. Norberto BOBBIO).
Nesse contexto, o desenvolvimento de sistemas deônticos
paraconsistentes pode ser de grande utilidade porque através da formalização torna-se
mais fácil identificar a existência de paradoxos e enunciados que implicam sentenças
contraditórias, as quais a utilização da linguagem natural, por suas limitações, não
revela.
Observa-se que se fala em pluralidade de sistemas lógicos
paraconsistentes. Isto porque, como não há no estudo da lógica deôntica um único
sistema capaz de explicar e formalizar todo o direito, da mesma forma ocorre com as
lógicas paraconsistentes. Não há apenas uma, e tampouco as lógicas paracompletas e
não-reflexivas expressam a totalidade das lógicas heterodoxas.
A discussão quanto ao objeto, à função e distinção das normas e
das proposições normativas, suas estrutura, a possibilidade de aplicação dos
princípio (sic) lógicos às normas, e sua adequada formalização, também estão
presentes quando se tem em conta a perspectiva da formalização de um sistema lógico
paraconsistente.
Também aqui se discutem os operadores que compõe a lógica deôntica,
e a perspectiva de uma lógica multivalorativa que proponha outros valores além do
verdadeiro ou falso, ou mesmo do válido ou inválido, conforme o caso.
A premissa que une as diversas propostas que já apareceram e que
continuam a surgir neste campo, é a possibilidade de construção de uma lógica onde
admita-se a existência de contradição sem que com isso o sistema perca sua utilidade.
Dito de outra forma, uma lógica inconsistente, mas não trivial.
É nesse sentido que pode estar se abrindo um novo caminho para que
(sic) o direito, mesmo com contradições e lacunas que traduzem a própria complexidade
das relações sociais. Nessa perspectiva, a lógica deôntica paraconsistente passa a ser
instrumento importantíssimo de análise do próprio direito e da ciência
jurídica." (in PARADOXOS DA AUTO-OBSERVAÇÃO - PERCURSOS DA TEORIA JURÍDICA
CONTEMPORÂNEA, organizado por LEONEL SEVERO ROCHA, JM Editora, Curitiba, 1997, p. 89/92)
Importante notar que esta Apelação de Ação Popular está no
contexto da Reforma do Estado e Administração Pública Gerencial doutrinada por FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO, in verbis:
"Vivemos hoje nem cenário global que traz novos desafios às
sociedades e aos Estados nacionais. Não é nenhuma novidade dizer que estamos numa fase
de reorganização tanto do sistema econômico, como também do próprio sistema político
mundial. Como conseqüência desse fenômeno, impõe-se a reorganização dos Estados
nacionais, para que eles possam fazer frente a esses desafios que estão presentes na
conjuntura atual.
É imperativo fazer uma reflexão a um tempo realista e criativa sobre
os riscos e as oportunidades do processo de globalização, pois somente assim será
possível transformar o Estado de tal maneira que ele se adapte às novas demandas do
mundo contemporâneo. É esse - creio - o objetivo precípuo deste seminário. Trata-se de
exercício do qual nenhum governo deve - e nem pode - furtar-se, sob pena de comprometer
as perspectivas nacionais de desenvolvimento.
Reformar o Estado não significa desmantelá-lo. Pelo contrário, a
reforma jamais poderia significar uma desorganização do sistema administrativo e do
sistema político de decisões e, muito menos, é claro, levar à diminuição da
capacidade regulatória do Estado, ou ainda, à diminuição do seu poder de liderar o
processo de mudanças, definindo o seu rumo.
Mudar o Estado significa, antes de tudo, abandonar visões do passado
de um Estado assistencialista e paternalista, de um Estado que, por força de
circunstâncias, concentrava-se em larga medida na ação direta para a produção de bens
e de serviços. Hoje, todos sabemos que a produção de bens e serviços pode e deve ser
transferida à sociedade, à iniciativa privada, com grande eficiência e com menor custo
para o consumidor.
Insisto, assim, em um ponto: esta visão de um Estado que se adapta
para poder enfrentar os desafios de um mundo contemporâneo não pode ser confundida nem
com a inexistência de um Estado competente, eficaz, capaz de dar rumo à sociedade ou,
pelo menos, de acolher aqueles rumos que a sociedade propõe e que requerem uma ação
administrativa e política mais conseqüente, nem tampouco significar a inércia diante de
um aparelho estatal construído em outro momento da história de cada um dos nossos
países que se concentrou seja no corporativismo e no assistencialismo, seja na produção
direta de bens e de serviços.
Não há dúvida de que, nos dias de hoje, além desse papel de
iluminar os caminhos nacionais e, de certa maneira, de apontar metas que sejam
compatíveis com os desejos da sociedade, o Estado deve também concentrar-se na
prestação de serviços básicos à população - educação, saúde, segurança,
saneamento, entre outros.
Mas, para bem realizar essa tarefa - que é ingente e difícil -, para
efetivamente ser capaz de atender às demandas crescentes da sociedade, é preciso que o
Estado de reorganize e para isso é necessário adotar critérios de gestão capazes de
reduzir custos, buscar maior articulação com a sociedade, definir prioridades
democraticamente e cobrar resultados.
Muitos confundem a reforma do aparelho estatal com um mero
exercício de aprovação pelo Congresso Nacional de diplomas legislativos que desenhem o
Estado com uma face mais competente e mais atuante. É claro que a participação do
Congresso na redefinição do papel do Estado é essencial, até porque muitas dessas
mudanças exigem emendas constitucionais. Mas o verdadeiro processo de redefinição do
Estado para que ele possa realmente atender os seus objetivos contemporâneos é um
processo, não um ato. Envolve toda uma mudança de mentalidade; algo que é muito mais
profundo do que se imagina, porque implica efetivamente a alteração de práticas que
estão enraizadas nas nossas sociedades. E o que é ainda mais difícil de mudar:
práticas enraizadas que cristalizam interesses concretos.
Faço aqui uma ressalva: ao dizer que interesses se cristalizaram,
não estou qualificando este fato, em si mesmo, de negativo. Mas, quando muda uma
conjuntura e esses interesses persistem e não são mais adequados para responder os
desafios da nova época, eles passam a ter um papel politicamente negativo.
Muitas vezes, são interesses que podem ser até altruístas ou
legítimos, vistos de certa perspectiva. Mas quando observamos esses interesses
particulares de uma perspectiva mais ampla, do conjunto da sociedade, vemos que eles não
mais se justificam.
Às vésperas de minha posse, realizamos um grande seminário
internacional, aqui mesmo no Itamarati. Recordo-me de uma discussão a respeito do papel
das organizações não-governamentais e do Estado. No início, essa relação ONG-Estado
era marcada por uma espécie de distanciamento, até mesmo de antagonismo. Havia
ataques de parte a parte e isso levava o aparelho do Estado a ficar cada vez mais voltado
para si mesmo, no intuito de defender a sua visão de como conduzir a coisa pública.
Progressivamente, isso foi mudando. Hoje, para usar a expressão de Manuel Castells,
sociólogo espanhol que eu prezo muito, as organizações verdadeiramente eficientes
deixaram de ser "não-governamentais": passaram a ser
"neogovernamentais". Esta é uma realidade, uma forma de interação que tem que
ser absorvida tanto pelas ONGs quanto pelo Estado.
O Estado tem que se abrir a certas pressões da sociedade, mas a
sociedade também tem que aprender a dialogar com o Estado, de uma maneira que seja
adequada aos objetivos da população. Infelizmente no Brasil, uma parcela pequena, é
verdade, da população não quer o diálogo com o Estado. Quer pura e simplesmente sua
destruição; não admite reconhecer a legitimidade dos governos quando eles são
legítimos e democráticos.
Para avançar nessa interação entre Estado e sociedade é preciso
liderança, é necessário haver um processo progressivo de convencimento. Estou seguro de
que cada um dos participantes deste seminário tem experiências interessantes que
confirmam esse enorme esforço contemporâneo de reconstrução do Estado, buscando criar
novos canais que permitam que a sociedade e a burocracia possam, articuladamente,
dialogar; que permitam que o poder político possa tomar as decisões pertinentes. Porque
numa democracia, em última análise, o poder legítimo é o poder legitimado pelo voto,
pela cidadania. Assim, nem a burocracia em si mesma, nem os grupos da sociedade civil que
não passaram pelo teste das urnas têm legitimidade para liderar a mudança. Eles têm,
isso sim, o dever de preparar a discussão, de pressionar os governantes. Mas a
legitimidade da decisão tem que caber àqueles que são os detentores da vontade popular.
Esta é a essência da democracia; esta é a essência do republicanismo.
Isso significa que nós temos que preparar a nossa administração para
a superação dos modelos burocráticos do passado, de forma a incorporar técnicas
gerenciais que introduzam na cultura do trabalho público as noções indispensáveis de
qualidade, produtividade, resultados, responsabilidade dos funcionários, entre outras.
Estamos vivendo um momento de transição de um modelo de
administração que foi inicialmente assistencialista e patrimonialista (que mais tarde
deu um passo adiante, burocratizando-se, no sentido weberiano da palavra) para um novo
modelo, no qual não basta mais a existência de uma burocracia competente na definição
dos meios para atingir fins. Agora, o que se requer é algo muito mais profundo: um
aparelho do Estado que, além de eficiente, esteja orientado por valores gerados pela
própria sociedade. Um aparelho de Estado capaz de comunicar-se com o público de forma
desimpedida. Essa passagem é um dos grandes desafios do mundo contemporâneo. É uma
transição à qual todos devemos nos dedicar, a fim de reorganizar o aparelho de Estado.
E essa transição não será possível nem viável sem a
participação dos funcionários públicos. Erram aqueles que identificam no funcionalismo
público um foco de resistência à mudança. Eles não podem ser vistos como repositório
do velho, do antigo, do antiquado, do arcaico. Reconheço com satisfação que a
burocracia estatal tem um número expressivo de núcleos de competência e excelência.
É necessário que esses núcleos ganhem força, para que tenham a
capacidade de contagiar o conjunto da administração. Porque a reforma apenas terá
êxito se for sustentada pelas lideranças do serviço público. Não digo as lideranças
sindicais que, infelizmente, estão atreladas às formas mais nocivas de corporativismo,
mas sim as lideranças de mentalidade que querem renover-se, que têm entusiasmo pela
função pública, que têm o sentido de missão, de espírito público.
A reforma tem que ganhar o apoio do funcionalismo. É preciso que o
setor que administra seja parte ativa nessa transformação. E que, como parte ativa desse
processo, os próprios funcionários convençam-se de que é preciso deixar de lado os
resquícios do patrimonialismo, da troca de favores, das vantagens corporativistas, do
servilismo clientelista ao poder político, como ocorre em certas áreas da
administração pública.
Precisamos acabar com a noção de que ser funcionário é ser
privilegiado. O privilégio é servir ao público, à cidadania. E, servindo adequadamente
ao público, ser compensado pela admiração por parte da sociedade. E essa admiração
não pode se esgotar em belas palavras. Deve significar também a valorização das
carreiras do serviço público, melhor remuneração. Mas, como tenho insistido, nada
disso se conquista do dia para a noite. E tampouco podemos dar guarida à manifestação
de interesses corporativos, que não merecem qualquer apoio da população.
A melhoria das condições de trabalho do funcionalismo crescerá
com a estabilização da economia, não com a demagogia daqueles que sonham com a volta da
indexação salarial, que só realimenta a inflação e penaliza os mais pobres. Viver
numa economia estabilizada requer uma outra mentalidade, na qual obviamente os aumentos
têm que estar condicionados à disponibilidade efetiva do orçamento e ao aumento da
produtividade. Não há outra maneira de um país crescer senão aumentando a sua
produtividade, a sua riqueza e, ai sim, simultaneamente, fazendo com que aqueles que são
partícipes da construção da nação possam usufruir de parte crescente desse
benefício, sem prejuízo, obviamente, das taxas necessárias de investimento.
Temos, portanto, um desafio tipicamente iluminista, no sentido que
o termo tem desde o século XVIII: ou se introduzem graus de racionalidade no processo das
reformas e esta racionalidade passa a ser sentida pelos próprios partícipes, que são os
funcionários; ou então a reforma fracassa, porque ela vai ser obstaculizada por pessoas
que pensam que o governo é capaz de fazer milagres, sobretudo no que diz respeito à
remuneração. Se o governo for sério, não fará milagres, nem enganará ninguém.
Temos, assim, outra vez uma batalha, digamos, teórico-prática,
político-ideológica de convencimento e de reorganização das visões de mundo. É
indiscutível, porém, que é preciso haver reformas. É indiscutível que precisamos
revalorizar o trabalho do funcionário público, a própria ação do Estado.
Uma coisa é certa: precisamos de uma reforma profunda do aparelho
do Estado, pois de outra forma não estaremos à altura de enfrentar esse gigantesco
desafio."
(in REFORMA DO ESTADO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL, 2ª
ed. Fundação Getúlio Vargas Editora, pgs. 15/19, negrito meu)
Claro e preciso FERNANDO HENRIQUE CARDOSO, pois a Administração
Pública, assim como a administração da Justiça, deve estar em constante mudança
visando atender aos novos valores sociais da sociedade brasileira em época de
globalização, inclusive de seus dramas globais, sem entretanto desconsiderar as bases de
fato e de direito sobre as quais as mudanças devem ocorrer, bem como os limites
constitucionais, legais e administrativos, então revalorizados, existentes para mudança.
O drama global também é percebido por JOAN PRAT I CATALÁ, nas
seguintes considerações sobre governabilidade democrática, instituições, ação de
governo e lideranças, para ilustração de Todos(as), in verbis:
"Lideranças para a governabilidade democrática
A liderança é um aspecto vital da mudança institucional. Mas há
equívocos demais na literatura sobre esse assunto, o que nos obriga a fazer alguns
esclarecimentos. Em sociedades que vivem em ambientes turbulentos como as atuais, nas
quais os novos jogos e suas regras obrigam a desaprender e a desligar-se de algumas das
velhas aptidões e dos velhos modelos mentais para desenvolver modelos novos e adaptados,
as lideranças meramente transacionais não são suficientes. Esse tipo de liderança não
serve para produzir a arquitetura social capaz de incentivar o desenvolvimento da
confiança ou do capital social necessários para que a mudança institucional seja
sustentável. O grande problema que os líderes atuais têm de enfrentar pode ser assim
formulado: como uma sociedade heterogênea - em que é grande o número de atores com
interesses conflitivos, em que nenhum dos grupos tem como forçar os demais a cooperar -
pode encontrar caminhos para avançar no sentido de arranjos institucionais mais
eficientes e mais eqüitativos? (Dove, 1996).
De uma perspectiva institucional da governabilidade democrática,
liderança significa funções e processos, não pessoas. A história flui pela ação de
forças impessoais. Mas a história particular de uma sociedade acaba sendo moldada pelo
número e pela qualidade das pessoas que se decide pôr à frente do processo de mudança.
Esse processo não se produz nunca por si só. Só os deterministas históricos crêem no
contrário. Sem a função de liderança, a mudança acabaria por não se produzir, ou
produzir-se-ia, mas limitada ou inadequada. A emergência dos novos modelos mentais,
percepções e aprendizados, a mudança de atitudes, a aquisição de novas aptidões são
processos que se podem dar mais rapidamente e melhor quando se dispõe de líderes.
A liderança transformacional não é uma função limitada às altas
posições de autoridade, mas deve-se estender a todo o conjunto da sociedade. Em
sociedades pluralistas e complexas, os líderes devem provir de toda a sociedade. Ser
líder depende de decisão pessoal - tanto ou mais que da posição formal que se ocupe -,
de assumir a função de se pôr à frente, de procurar ter visão e sentido de direção,
de construir e comunicar confiança. Isso supõe que o líder não desconheça a
importância vital da liderança governamental.
Podem ser interessantes algumas comparações entre tipos de liderança
e níveis de capital social - outro nome do sistema institucional formal e informal. Nas
sociedades com alto nível de capital social, a liderança tende a ser plural,
participativa e orientada para o futuro. Nas sociedades com baixo nível de capital
social, as lideranças tendem a ser concentradas e de visão curta. Nestas últimas
sociedades, o poder está muito concentrado, mas também muito condicionado pelos
equilíbrios entre atores cujas ações não se baseiam na confiança nem em fortes
tradições cívicas. Nessas sociedades, a liderança tende a ser transacional ou de
acomodação entre atores que buscam evitar o conflito. A liderança transformacional
emerge com muita dificuldade, afogada pela quase impossibilidade de identificar e manejar
positivamente o conflito.
Em primeiro lugar, o líder que a mudança institucional exige deve ter
visão. Para que tenha visão, é preciso que: a) compreenda os interesses de um amplo
espectro de atores sociais, no curto e no longo prazos; b) tenha uma fina percepção dos
equilíbrios implicados nos arranjos institucionais vigentes; c) tenha suficiente
consciência dos impactos que as tendências e as forças de mudança, atuais e futuras,
virão a ter sobre a sociedade e seus principais atores. O fator decisivo não é a visão
ser inovativa, e sim que esteja em conexão com os interesses e as motivações do grande
público.
Em segundo lugar, para a governabilidade democrática, os líderes
devem ter legitimidade. É a legitimidade que permite uma efetiva comunicação entre o
líder e o grande público. Essa comunicação não depende tanto das habilidades de
comunicar do líder, mas, muito mais, de ter adquirido credibilidade. A legitimidade da
liderança não depende, pois, de o líder deter o poder (todos os líderes são
detentores atuais ou potenciais de poder; mas nem todos os que detêm o poder são
líderes), mas da credibilidade de que goze e da confiança que inspire no público.
Credibilidade e confiança, nesse caso, não são conseqüência automática ou natural de
qualidades pessoais, e sim produto de um processo de percepção da consistência entre
discurso, ações e resultados. Nem sempre, contudo, confia-se no líder pelas razões
certas. O ajuste de expectativas entre o líder e seu público é tão necessário quanto
a explicação capaz de compensar as inconsistências percebidas (Burns, 1979).
Em terceiro lugar, para a governabilidade democrática, a liderança
requer capacidade de tratar adequadamente o conflito. Se o conflito não pode emergir,
tampouco emergirá a consciência dos custos da manutenção do status quo. A
democracia também é uma arena para o reconhecimento e o tratamento civilizados dos
conflitos. Os líderes da governabilidade democrática não fogem dos conflitos:
utilizam-nos como estímulo para o processo de desenvolvimento e aprendizado social. Para
tanto, têm de desenvolver a capacidade de converter demandas, valores e motivações
conflitivas em fluxos coerentes de ação, que competirão com outros fluxos alternativos
na arena política. Visão e credibilidade ajudam: mas a capacidade de gerir conflitos é
fundamental. A mudança institucional gera conflitos não só entre atores, mas também no
âmago de um mesmo ator. A incerteza da mudança produz ansiedade e a ansiedade deve ser
compensada, paulatinamente, pelo aprendizado de novos modelos e pela aquisição de novas
aptidões e de uma nova segurança. Se, por um lado, evitar o conflito pode impedir a
mudança, por outro, o conflito descontrolado pode gerar uma incerteza excessiva, que, por
sua vez, pode se traduzir em rejeição da liderança (Heifetz, 1994).
Por fim, para a governabilidade democrática, a liderança deve ser
capaz de atuar como catalisadora do processo de aprendizado e de adaptação social. O
tipo de líder capaz de catalisar a mudança institucional há de ser também capaz de
colocar questões e opções difíceis, que precisam ser enfrentadas sem respostas
preestabelecidas, o que impõe a necessidade de iniciar processos de aprendizado social. A
capacidade de provocar e conduzir esses processos talvez seja a mais importante para o
tipo de liderança de que hoje se necessita. Mas a condução do processo de aprendizado
social é uma função que pouco tem a ver com a aplicação aos problemas sociais do
repertório de ferramentas preestabelecidas. O aprendizado social é um processo de
construção da própria história mediante opções difíceis e problemáticas, que, em
um esquema democrático, implicam transparência, deliberação e conflito. Nenhum
especialista internacional pode tirar da maleta a solução mágica que poupará os povos
dessas dores de parto.
Mas os povos e seus líderes caem, muitas vezes, na tentação de
buscar a solução mágica. Não percebem que o verdadeiro aprendizado social não
consiste em encontrar a solução certa, mas em um processo contínuo de questionamento,
interpretação e exploração de opções. O aprendizado para a mudança institucional
corresponde ao que Argyris chamou de aprendizado de "laço duplo": no plano
individual, requer que cada um examine pessoalmente os temores e desejos que estão por
trás de certo modelo de comportamento; no plano organizacional, força os empregados a
examinar as políticas, as práticas ou as ações que os protegem de ameaças e
incômodos, mas que, ao mesmo tempo, impedem que a organização aprenda a reduzir ou a
eliminar as causas das mesmas ameaças ou incômodos. No plano social, esse tipo de
aprendizado obriga os atores a compreender como os sistemas institucionais existentes
afetam os valores fundamentais da convivência.
Mas o aprendizado social não se limita à mera compreensão
intelectual. Saber por que atuamos de determinado modo ou por que existem certas
políticas ou regras não é suficiente para que comece o processo de mudança. O
verdadeiro aprendizado tampouco consiste em acumular informações ou em acrescentar novas
informações ou soluções ao acervo já existente. Em momentos de descontinuidade, o
aprendizado implica principalmente a substituição de informações, de modelos, de
valores, de aptidões. É preciso desaprender antes de aprender os novos modelos, valores
e aptidões que nos capacitarão a continuar aprendendo. A América Latina está vivendo a
mudança de um modelo de desenvolvimento. Otimizar as potencialidades do novo modelo exige
uma multidão de lideranças que conduzam esse tipo de aprendizado.
Todo processo de aprendizado implica necessariamente incerteza e
tensão. Sem tensão não há aprendizado nem mudança. Uma função-chave da liderança
é a capacidade de produzir e controlar o tipo de tensão emergente. A tensão que
catalisa a mudança é a que Senge chama de "tensão criativa". Nela, os
líderes forçam os atores sociais a aceitar a realidade e impedem que fujam para mundos
fantasiosos inspirados na realidade. Parte dessa realidade é a consciência dos riscos
implícitos no status quo, da ameaça que há no imobilismo. Essa consciência gera
tensão, a ansiedade e o conflito necessários para mudar a direção da visão - de
início imprecisa, mas confiável - de uma nova realidade. A imprecisão e a
confiabilidade dependem da legitimidade ou da credibilidade dos líderes. Cabe a eles
manter a tensão entre a realidade atual e a visão do futuro, sem perder o controle sobre
o nível de conflito a que leva a ansiedade, a qual eventualmente pode ser paralisante.
O aprendizado social não torna menos complexa a mudança
institucional. Mas pode contribuir para melhorar as habilidades dos atores para enfrentar
os desafios de um ambiente em mutação acelerada e, em tantos casos, permanente. Nesses
ambientes, o aprendizado e a evolução institucional não têm ponto de chegada.
Dificilmente se poderá dizer que a democracia está consolidada, que o mercado é
plenamente eficiente e que a sociedade é plenamente eqüitativa. Cada geração deverá
assumir sua própria parcela de responsabilidade nessa incessante reconstrução da
história. Já se disse, com razão, que a democracia só sobrevive a ela mesma mediante a
permanente recriação. Ocorre o mesmo com os mercados e com as instituições da
solidariedade social, como demonstra o atual replanejamento do Estado do Bem-Estar em
vários países desenvolvidos. Porque as instituições que estão por trás desses
conceitos só existem em Estados de evolução e reavaliação permanentes. É provável
que o mais decisivo desafio a ser enfrentado pelos líderes para a governabilidade
democrática esteja, precisamente, em catalisar a ação dos atores sociais para que esse
reexame seja mesmo constante, porque aí está a base de qualquer processo de aprendizado
(Burns, 1979)."
(in REFORMA DO ESTADO E ADMINISTRAÇÃO PÚBLICA GERENCIAL, www.fgv.br/fgv/publicao/livros.htm
, 2ª ed., coord. LUIZ CARLOS BRESSER PEREIRA e PETER SPINK, p. 306/310)
Tais dramas são componentes diários nos procedimentos administrativos
e/ou judiciais de investigação sobre lavagem de dinheiro e/ou sonegação fiscal,
conforme ilustrado infra, mas antes, para evitar desagradáveis e
indesejadas surpresas com a paraconsistência das mesmas, desejável ouvir as palavras de
MONTESQUIEU, in verbis:
"CAPÍTULO VIII
EXPLICAÇÃO DE UM PARADOXO DOS ANTIGOS
COM RELAÇÃO AOS COSTUMES
Políbio, o judicioso Políbio, conta-nos que a música era
necessária para suavizar os costumes dos arcádios, que habitavam uma região onde o
clima era triste e frio; que os de Cineta, que negligenciaram a música,
excederam em crueldade todos os gregos e que não há cidade em que se tenham visto
tantos crimes. Platão não receia dizer que não se pode fazer alteração na música sem
que haja outra na constituição do Estado. Aristóteles, que parece só ter escrito sua Política
para opor seus sentimentos aos de Platão, está, contudo, de acordo com ele quanto à
influência da música sobre os costumes. Teofrasto, Plutarco, Estrabão, todos os Antigos
pensaram do mesmo modo. Não é opinião lançada sem reflexão; é um dos princípios
de sua política. Assim elaboraram as leis; assim queriam que se governassem as cidades.
(in O ESPÍRITO DAS LEIS, UNB, 1995, tradução de FERNANDO
HENRIQUE CARDOSO e LEÔNCIO MARTINS RODRIGUES, p. 30/1, negrito meu)
Com as palavras de MONTESQUIEU em mente é mais fácil entender a
relação popular da musical letra limítrofe de ROGER ROCHA MOREIRA & WARNER CHAPPELL
ao drama desta actio popularis, in (sic) verbis:
"Eu, Eu, Eu, Eu,...
A tanto tempo Eu vinha Me procurando,
Tanto tempo faz,
já nem lembro mais,
Sempre correndo atrás de Mim feito um Louco,
Tentando sair
desse Meu sufoco.
Eu era tudo que Eu podia querer,
Era tão simples Eu custei para aprender.
Daqui pra frente nova vida Eu terei,
Sempre ao Meu lado bem feliz Eu serei.
- Eu Me Amo,
- Eu Me Amo,
- Não posso mais viver sem Mim
!:-(- bis!;-)
Como foi bom Eu ter aparecido
Nessa Minha vida,
já um tanto sofrida,
Já não sabia mais o que fazer,
PráEu gostar de Mim,
Me aceitar assim
Eu que queria tanto ter Alguém
Agora Eu sem sem Mim
Eu não sou Ninguém
Longe de Mim nada mais faz sentido
Pra toda vida
Eu quero estar Comigo
- Eu Me Amo,
- Eu Me Amo,
- Não posso mais viver sem Mim
!:-(bis!;-)
Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu, Eu,...
Foi tão difícil
praEu Me encontrar,
É muito fácil um grande amor acabar
masEu vou lutar por esse amor até o fim
Não vou mais deixar
Eu fugir de Mim
Agora Eu tenho uma razão pra viver,
Agora Eu posso até gostar de Você.
Completamente Eu vou poder Me entregar
É bem melhor Você sabendo se Amar.
- Eu Me Amo,
- Eu Me Amo,
- Não posso mais viver sem Mim
!:-(bis e coro inter bis: ...Ele Se ama...!;-)
!:-(in ULTRAJE A RIGOR - 18 ANOS SEM TIRAR! CD 1707002-2
www.ultraje.com e/ou www.ultraje.com.br !;-)
Com a prosa e/ou verso limítrofes supra referidas em mente,
seguem quatro ilustrações paraconsistentes concretas para esta actio popularis:
1º) De VANESSA ADACHI, matéria sob manchete "MERCOSUL Membros da
equipe econômica de Brasil e Argentina se reúnem em Buenos Aires - Bloco atacará
lavagem de dinheiro", publicado no jornal Folha de S. Paulo, de 13/04/2000, p. 2-3,
com destaque para o seguinte parágrafo, in verbis:
"Os sócios do Mercosul estudam um sistema integrado de combate à
lavagem de dinheiro na região. O assunto está sendo tema de um encontro bilateral, entre
Brasil e Argentina, em Buenos Aires.
(....)"
2º) Por EVA JOLY, por tradução e comentário de ALCINO LEITE NETO
sob a manchete "A Justiça contra a delinqüência financeira - Juíza francesa
descreve as dificuldades da lei para apurar os crimes econômicos atuais", publicada
no caderno mais! do jornal Folha de São Paulo de 30/07/2000, p. 30/1, com destaque para
os seguintes parágrafos, in verbis:
"(....)O mundo do crime financeiro é o tema principal de
Notre Affaire à Tous (Nosso Assunto Comum), livro da juíza francesa Eva
Joly, lançado em junho, cuja tradução seria de grande utilidade no Brasil.(....)
Circulação de capital Há uma diferença histórica crucial
entre a corrupção passada e a atual, que está relacionada à forma de circulação do
capital no chamado mundo globalizado. Agora, a crise do Estado e a desregulamentação da
economia, segundo Joly, liberaram as fronteiras tanto para a especulação financeira
quanto para a máfia internacional - que de algum modo não se contradizem. É como se a
corrupção e a delinqüência deixassem as bordas obscuras do capitalismo e fossem para o
seu centro vital.
Joly escreve sem pestanejar: No mundo das finanças, já que nada
pode ser proibido, tudo é de agora em diante permitido. Os banqueiros comentam entre si
privadamente: se os lucros da cocaína desaparecessem de um dia para o outro dos circuitos
off-shore (composto pelos paraísos fiscais), o sistema financeiro inteiro
seria perturbado".
(....)
Quem não quiser se estender demais nesses assuntos pode ir direto ao
ponto em que o livro ganha fôlego e importância geral - do capítulo Como Eu
Descobri os Crimes de Dinheiro em diante. O título espelha a vaidade da autora, mas
é justamente a partir daí que ela vai aos poucos se retirar de cena para deixar ver a
catástrofe em que nós estamos metidos."
3º) Por RICARDO NAHAT, as considerações de fato e de direito a
seguir articuladas, in verbis:
"6. As contas bancárias no exterior. A evasão de divisas.
Você sabe por que nenhum Governo brasileiro investigou seriamente
as contas dos brasileiros no exterior? Por que apareceriam os nomes de vários figurões
do próprio governo (é bom lembrar que existe um político brasileiro que tem a conta nº
PWJ 333081, no Citibank da Suíça, fato já divulgado pela imprensa nacional há algum
tempo atrás - VEJA de 10.02.88).
Embora não seja uma tarefa fácil, é temerário dizer que ela seria
impossível. Existem precedentes de quebra do sigilo bancário, pois o governo
norte-americano já congelou e abriu à Justiça em oportunidades anteriores as contas
bancárias dos ex-ditadores Marcos (Filipinas) e Noriega (Panamá). Aliás, com a invasão
do Panamá pelos Estados Unidos, o governo norte-americano deve ter tido acesso às
composições societárias de todas as empresas panamenhas usadas como empresas de fachada
para manter o dinheiro dos corruptos de todo o mundo, será que o governo brasileiro
tentou, junto ao governo norte-americano, saber se algum político brasileiro é sócio de
alguma dessas empresas?
Na época da Revolução, houve um seqüestro político com pedido de
pagamento do resgate pelo governo brasileiro por meio de depósito em uma conta numerada
na Suíça; o governo desse país, a pedido do brasileiro, forneceu o nome do titular da
conta, pelo qual as autoridades brasileiras conseguiram localizá-lo no Brasil. Quando um
conhecido Delegado invadiu o apartamento dessa pessoa no Rio de Janeiro, ela se suicidou,
tal era o temor que o referido Delegado inspirava nos adversários do regime vigente no
país. Este caso é citado como prova de que, em determinadas condições (quando o fato
também é crime segundo a lei suíça), até mesmo a Suíça admite a quebra de sigilo,
bastando que haja um pedido formal justificado neste sentido (os atos de corrupção de
funcionários públicos brasileiros também são crimes segundo a lei suíça); se não
há investigações, é porque falta vontade política dos governantes brasileiros para
atacar o problema (quantos poderosos ficariam nus?).
Há o caso de um conhecido político brasileiro que foi roubado por seu
ex-genro ("ladrão que rouba ladrão tem cem anos de perdão"), no tocante ao
produto da corrupção decorrente da "caixinha" das empreiteiras. O seu genro
ocupava um cargo de confiança do mesmo e aproveitou para fazer sua caixinha particular.
Quando da separação da filha do político, esse viajou para os Estados Unidos e
conseguiu, junto aos bancos norte-americanos onde estava depositado o dinheiro em nome do
ex-genro, a sua devolução para ele, o político, mas não conseguiu fazer o mesmo com
relação aos bancos suíços, uma vez que somente tinha a sua palavra para provar que o
dinheiro era dele, porque ele é quem tinha ocupado um importante cargo político no
Brasil. Os bancos norte-americanos aceitam essa argumentação, os suíços não. Moral
(imoral) da história: se você é um corrupto, use os bancos suíços, pois eles são
mais seguros em caso de desavenças familiares.
Outras vezes, os depósitos são feitos em nome de fundações sediadas
no exterior (Liechtenstein), abertas somente para essa finalidade, cujo procurador é um
advogado que invoca o sigilo profissional para não dar informações a respeito dos seus
titulares. Assim, as pessoas controlam a fundação que, por sua vez, é que é titular do
depósito em moeda estrangeira, no próprio ou em outro país; caso se descubra o nome do
depositante (a fundação), não se consegue chegar ao nome dos seus verdadeiros
controladores.
Sugestão: os bancos credores da dívida externa brasileira deveriam
ser obrigados pelo Governo brasileiro a fornecer os nomes dos correntistas brasileiros ou
residentes no país, sob pena de não recebimento dos seus empréstimos ao Brasil; os
nomes fornecidos seriam cruzados com as respectivas declarações de IR, para os fins do
art. 22, parágrafo único, da Lei nº 7.492/86 (lei do colarinho branco), para saber se
estão declarados ou não. Outra sugestão: efetuar, junto à Justiça suíça, pedidos de
investigação individualizados para os políticos brasileiros suspeitos de corrupção e
enriquecimento ilícito, juntando as respectivas provas ou indícios.
A evasão de divisas também contribui para o empobrecimento da país.
O ágio entre a cotação do dólar oficial e o paralelo estimula o aparecimento das
fraudes cambiais que proporcionam o lucro dos fraudadores.
A evasão de divisas ocorre de várias formas, sendo as mais
importantes o subfaturamento nas exportações e o superfaturamento nas importações.
O subfaturamento nas exportações ocorre da seguinte forma: a empresa
exportadora brasileira abre uma empresa subsidiária fria, que tem como
endereço somente uma caixa posta, num paraíso fiscal, por exemplo, em Grand Cayman (ilha
do Caribe) e, em vem de exportar diretamente para o importador final, faz a operação por
intermédio de sua subsidiária, por valor menor do que o real (subfaturamento), ficando a
diferença depositada lá. No livro O Roubo é Livre, Francisco de Oliveira conta
que a Centralsul tinha uma conta bancária em Houston, Texas, USA, e, durante os anos
80/82, exportou produtos agrícolas no valor de US$ 320 milhões, enquanto os agricultores
receberam apenas US$ 180 milhões, gerando uma diferença de US$ 140 milhões, ficando US$
31 milhões com o Bank of America (a título de pagamento de empréstimos e juros) e US$
109 milhões sendo desviados a terceiros; o BNCC emprestou à Centralsul, sem garantias
reais, o equivalente a US$ 68 milhões, até hoje não recebidos.
Se houvesse interesse das autoridades brasileiras em minimizar o
problema, elas poderiam fazer o cruzamento das planilhas apresentadas ao antigo CIP com as
guias de exportação para provar que ocorreram exportações abaixo do custo de
produção, mostrando a evasão de divisas para o exterior (note-se o caso do FIAT
exportado durante o Plano Cruzado, por cerca de 1/3 de seu valor no mercado interno, o
que, mesmo deduzidos os impostos incidentes no mercado interno e não incidentes na
exportação, é um valor muito baixo).
No superfaturmento das importações a operação é inversa: o
importador brasileiro paga um valor maior do que o correto pelas suas importações,
fechando o câmbio pelo seu valor oficial, sendo que, do valor total remetido pelas
autoridades brasileiras ao exportador no exterior, uma parte volta para uma conta
bancária que o importador brasileiro mantém no exterior. Ele também pode importar, não
diretamente do exportador, mas por intermédio de uma empresa sua sediada no exterior,
ficando a diferença depositada lá fora, à semelhança do que ocorre no subfaturamento
das exportações, só que de forma inversa.
Há também o caso das fraudes cambiais, onde empresas pedem guias para
importações-fantasmas que nunca serão realizadas, fecham os contratos de câmbio e,
depois, de falsificarem outros documentos (como as declarações de imporatação que
atestariam a chegada das mercadorias ao país), conseguem remeter ao exterior dólares
comprados no câmbio oficial. O lucro obtido irregularmente é proporcional ao ágio entre
as cotações do dólar no mercado paralelo e oficial; estima-se que o país perdeu,
somente em 1988.1989, US$ 360 milhões com as fraudes cambiais nas importações fantasmas
(Jornal da Tarde de 08.12.89).
Solução para esse problema: instituir o câmbio realmente livre, o
que eliminará o ágio entre as cotações do dólar oficial e do paralelo, eliminando o
lucro motivador da fraude. (....)" (in ANATOMIA DA CORRUPÇÃO, exemplar em
adendo).
Claro e preciso RICARDO NAHAT, pois diversos de seus argumentos estão
no espírito da Lei nº 9.613/98, porém não basta corpo e alma legal pois ao popular pé
da letra Ninguém faz grandes investigações com dados financeiros puros e singelos,
mister sendo a apreciação paraconsistente do animus dos(as) envolvidos(as) com as
"Cornélias", a fim de extrair conseqüências de fato e de direito para
Todos(as).
4º) Por www.transparencia.org.br
em página inicial capturada na rede da nesta data, com as seguintes questões
limítrofes, in verbis:
"Qual o custo da corrupção para o país?
Quais as causas desse problema?
É possível enfrentar os esquemas ilegais?
Como desmontá-los?
O que o cidadão comum pode fazer diante deles?"
Do exposto e em poucas e outras palavras, a obra cinematográfica de
SYDNEY POLLACK, juntada aos autos com a petição de 28.06.1999, sob protocolo 034403,
demonstra cinematograficamente o supra ilustrado, pois viver é fazer a energia no
espaço valer o tempo da paraconsistência existencial humana de ser e dever ser
"Cornélia", é uma Arte, e dramas familiares são prejudiciais à
Administração pública, assim como a privada, já que a Cidadania pagou, paga e pagará
a conta bio-psicológica, ético-filosófica e material de ambas, ontem, hoje e amanhã.
São Paulo, 31 de julho de 2000.
Carlos Perin Filho
OAB-SP 109.649
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